quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Amor Impossível


(Selene and Endymion. Teto em Ny Carlsberg Glyptotek, Copenhagen)


A lua sempre foi o encanto dos enamorados. Consta que Selene, a deusa da Lua, nunca se havia interessado por homem algum. Sua imagem pálida e solitária atravessava os céus numa rotina de pura melancolia. Numa certa época, porém, ela foi acompanhada pelos olhos sonhadores do tímido Endimion, um belo pastor da Tessália, que levava o rebanho para o alto da montanha para poder observá-la mais de perto. De tanto fazer isso, ele começou a compreender o caprichoso ciclo lunar, que era um mistério para todos. Em função disso, granjeou fama na região, chegando aos ouvidos de Selene. Esta ficou curiosa: talvez ele fosse um homem diferente, capaz de entender o ritmo de seus delicados movimentos pelo céu noturno.
Certa noite, depois de muito hesitar, ela abandonou seu curso e veio ao encontro dele. Endimion estava adormecido ao relento, no cimo do monte, e era tão sereno o seu sono e tão suave o seu semblante que o coração da virgem Selene foi invadido por uma paixão que nunca antes experimentara. Depois dessa noite, era ela que ficava perturbada quando o avistava lá de cima, porque pressentia que essa atração recíproca, cada vez mais intensa, ia fazê-la entregar-se a um homem pela primeira vez. E foi assim: uma noite, quando ele dormia numa caverna, ela deitou ao seu lado e beijou-lhe os olhos fechados, infundindo-lhe um sono mágico - ele não podia acordar mas podia perceber e sentir tudo o que estava ocorrendo. Cheia de paixão, ela o possuiu com tanto ardor que esqueceu ser a Lua, o que causou um eclipse geral que deixou o mundo todo às escuras.
Acontece que Zeus não tolerava qualquer distúrbio no cosmos e resolveu castigá-la. Mas ela, em sua defesa, alegou que tinha se apaixonado, argumento que sempre sensibilizava o Rei dos deuses.
Então ele perguntou como poderia ajudá-la a manter a sua felicidade. "Deixe Endímion escolher seu destino, pai" disse ela. Consultado, o pastor respondeu que queria dormir eternamente, sem precisar temer a morte, prolongando para sempre aquele sonho maravilhoso que tivera - "e sem nunca envelhecer", acrescentou Selene, aproveitando a boa vontade de Zeus. Endímion dorme até hoje. Dizem que todas as noites a Lua ainda vem visitá-lo, e o abraça e o cobre de beijos - ele não pode ver a linda figura prateada que se desnuda ao seu lado e se curva sobre ele, mas sente o calor de seu hálito e seus suspiros apaixonados se misturam aos dela.

Os dois parecem cristalizar o sonho de qualquer enamorado: cristalizar para sempre aquela intensa paixão dos primeiros encontros. Infelizmente isso não é possível. A Lua e o pastor estão juntos, mas irão continuar sozinhos. Não poderão conhecer uma ao outro, porque não se falam e não se olham. Não vão rir juntos, não farão projetos, nem ao menos discutirão um com o outro. Não compartilham segredos, alegrias ou tristezas, e não podem, cada noite, contar um ao outro os vestígiuos do dia, aquelas coisas tão simples sem as quais o amor não sobrevive.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

A Espera

(Ariadne, Venus e Dionisio - Tintoretto)
A bela Ariadne era filha do rei Minos, monarca de Creta. Ela ficou fascinada por Teseu, quando ele foi até aquela ilha para enfrentar o Minotauro. Ela sabia muito bem o risco que ele corria. Mesmo que matasse o monstro, não conseguiria sair do labirinto, perdendo-se para sempre na trama infinita daqueles corredores escuros. Ariadne se ofereceu para ajudá-lo, desde que ele a levasse para Atenas como esposa, depois de realizada a tarefa. Teseu aceito a oferta e a condição. Então ela lhe deu um novelo de fio mágico, que foi desenrolando sozinho até encontrarem o Minotauro. Torturada pela angústia, ela ficou aguardando lá fora, ouvindo os sons distantes da luta que se travou no interior do labirinto. Quando finalmente Teseu retornou triunfante, com a espada ensanguentada na mão, ele teve a certez que aquele era o homem ao qual queria entregar seu coração e sua alma.
Temendo represálias do Rei, os dois fugiram no mesmo navio que trouxe Teseu à ilha. Em Naxos, já a salvos, passaram sua primeira noite de amor, e Ariadne adormeceu, encantada, nos braços seguros do herói. Ao acordar, no entanto, a surpresa de sempre: ele tinha ido embora, deixando-a ali sozinha, abandonada na areia dquela praia deserta. Ela não conseguia acreditar que fossem falsas todas aquelas juras de amor, e saiu correndo, desesperada a chmá-lo, como se ele ainda estivesse por ali e escutá-la. Então subiu ao alto de um rochedo e ainda pode ver a pequina vela negra que desaparecia no horizonte. Sentiu-se perdida. Não tinha mais para onde ir, e não podia voltar para Creta. Só lhe restava morrer.

Ela chorou o dia todo enquanto procurava um galho onde pudesse enforcar-se. À noitinha, vencida pelo cansaço, adormeceu na macia relva do local. No sono, Afrodite, a deusa do amor, veio trazer-lhe consolo. "Não era homem para ti, Ariadne. Eu te guardei para um deus".

E era verdade, pois durante a noite chegou à Naxos o deus Dionísio, acompanhado de seu irriquieto séquito de sátiros e bacantes. Quando Ariadne acordou, ao som alegre dos címbalos e dos pandeiros, o deus estava ajoelhado junto dela, amparando-a delicadamente em seus braços e afagando suavemente seus cabelos. Disse ele: "Princesa, não chores por um homem que foi teu só por um dia. Agora vais ter um deus como marido, e desta vez para sempre".

Sem hesitar, ela jogou ao mar as lembranças de Teseu e tratou de ser feliz, numa lição exemplar para todas as Ariadnes modernas que ainda choram na praia. Tratem de secar suas lágrimas, deixem aquela vela negra afastar-se na distância e preparem-se para a chegada do deus que vocês merecem. Pode ser que ele demore, pode ser até que ele não venha, mas não faz mal: o importante é viver plenamente a emoção que essa espera traz.

domingo, 20 de setembro de 2009

O Triunfo do Amor

(O Julgamento de Paris - Museu Capitolino - Roma)

Os gregos contavam que a Guerra de Tróia começou num concurso de beleza entre as deusas do Olimpo. Deuses e homens divertiam-se numa alegre festa de casamento, quando Éris, a deusa da discórdia, que não havia sido convidada exatamente por causa da sua fama, fez rolar no salão uma maçã de ouro na qual estavam gravadas tres palavras: "À mais bela". Bastou isso para provocar uma discussão generalizada entre os convivas daquela festa, ao fim da qual restaram apenas três candidatas: Atena, Hera e Afrodite. Então, elas foram pedir a Zeus que desempatasse a disputa.
Zeus, o rei dos deuses, era astuto demais para cair em tamanha armadilha. Alegou que não poderia interferir naquele certame que tinha como interessadas sua mulher e sua filha. Então, ordenou que procurassem Paris, jovem e belo pastor troiano, para que ele decidisse a quem caberia o troféu.
Paris, sozinho no monte Ida apacentando seu rebanho, subitamente viu chegarem aquelas três maravilhosas mulheres, e ficou sabendo que Zeus o encarregara de escolher a mais bela. Percebendo que a decisão, seja qual fosse, lhe traria duas poderosas inimigas, Paris tentou se esquivar daquela perigosa honra que invertia a ordem do universo, pois são os deuses que devem julgar os mortais. Mas uma ordem de Zeus não podia ser contestada.
Percebendo a hesitação do jovem, as três deusas, que também eram mulheres, tentaram seduzi-lo com promessas. Hera lhe oferece o poder absoluto sobre a Ásia e a Europa. Atena disse que lhe daria toda a sabedoria passada e futura. Afrodite, por sua vez, se limita a oferecer o amor de Helena, rainha de Esparta e a mais bela mulher do mundo. Como sabemos, Paris escolheu ficar com Helena, que se tornou o pivô da Guerra de Tróia, atraindo sobre si e sobre todos os troianos o ódio e a perseguição implacável das duas deusas preteridas.
Nunca concordaremos sobre o significado dessa estória. Para uns ela representa o triunfo do amor sobre a sede de fama e poder. Para outros significa que o homem está condenado a sempre escolher, inutilmente, porque de um jeito ou de outro, vai acabar vítima das forças que desprezou. Uma terceira corrente, enfim, entende que ela apenas retrata aquele momento pungente em que nos defrontamos com o mistério da beleza, naquele ponto indefinível no qual os filósofos se calam e os poetas começam a cantar.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

O Dito e o não Dito

(Narciso - Caravaggio)

Aconteceu que Eco era uma ninfa tagarela que vivia despreocupadamente nos verdes campos da Arcádia, até que o imprevisível destino a colocou no caminho de Hera. Zeus, namorador incurável, costumava descer do Olimpo até as encostas dos montes para divertir-se com as jovens e sedutoras ninfas. Hera, esposa ciumenta e vigilante, desconfiava dessas ´descidas periódicas de seu esposo e começou a segui-lo. Várias vezes esteve a ponto de surpreendê-lo, mas Eco sempre conseguiu desviá-la com sua conversa astuciosa, permitindo que Zeus retornasse às escondidas para o Olimpo. Quando Hera descobriu o que fazia Eco, castigou-a exemplarmente: retirou-lhe o poder da língua e deu-lhe sempre a última palavra, mas nunca a primeira. A partir de então, Eco não pode mais falar com ninguém, condenada a repetir apenas as últimas palavras que lhe dirigiam.


Foi assim, quase muda, que Eco se apaixonou pelo belo Narciso, que despertava o amor de todos que o viam, mas ele amava somente a si mesmo. Como Eco não podia falar com ele, começou a segui-lo por toda a floresta, onde ele vivia caçando com os amigos. Quanto mais o seguia, mais apaixonada ficava. Um dia ela o encontrou sozinho no meio de um espesso bosque. Seu coração transbordava de sentimentos que não podia expressar. Queria chamar o nome dele, declarar seu amor, dizer-lhe palavras meigas, mas não podia fazer isso. Então se pôs a suspirar e gemer com tamanho desespero que Narciso percebeu. Assustado, voltou-se para o verde impenetrável da floresta e perguntou quem estava ali. "Ali, ali, ali", respondeu ela entusiasmada. " Mas porque todo esse clamor?" "Amor, amor, amor", Eco respondeu. "Sofres tanto assim?". "Sim, sim, sim" era a resposta. "Venha, vamos caçar juntos", convidou Narciso. "Juntos, juntos, juntos", respondeu ela encantada com o que tinha conseguido dizer e, não mais se contendo, surgiu do meio da mata correndo para ele com os braços estendidos. Narciso, porém, repeliu-a como fazia com todas as outras, e fugiu, enojado de seus beijos.

Diante dessa repulsa, trêmula de vergonha, desapareceu por entre as folhagens, indo esconder-se no fundo das grutas e dos desfiladeiros, sufocada por uma tristeza infinita. Eco não sobreviveu. Seu corpo, sua pele, o brilho de seus olhos, tudo nela foi desaparecendo, ficando apenas os seus ossos e sua voz, segundo dizem, espalhados por cavernas e penhascos solitários. Ainda hoje é ela que, ao longe, nos responde quando gritamos alguma coisa em sua direção.

Mas, de certa forma Eco triunfou sobre Hera, que tentou encerrá-la na prisão insurpotável do silêncio e do não-dito. Com pedaços de palavras e restos de sílabas, ela conseguiu declarar seu amor por Narciso, e a sua voz ainda persiste, ecoando na paisagem, a nos lembrar que a verdadeira tortura é não dizer o que sentimos.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

O Avesso do Bordado

O rei da Tessália, o jovem Admeto, tratava muito bem os súditos e aqueles que trabalhavam para ele. Foi sua sorte pois, sem que soubesse, o deus Apolo tomou lugar entre seus empregados. O deus ficou tão admirado com o bom tratamento que o rei lhe dispensava e aos demais, que resolveu recompensar aquela bondade toda, tornando-se seu protetor. Primeiro, ajudou Admeto a desposar a bela Alceste, princesa cuja mão era disputada por outros reis mais poderosos do que ele. Depois, prometeu-lhe que, quando chegasse sua hora de morrer, ele teria uma segunda chance neste mundo, podendo viver o mesmo número de anos que já tivesse vivido.
Admeto e Alceste experimentaram por alguns anos, as alegrias de um matrimônio feliz. Tiveram um casal de filhos que foram recebidos com grande júbilo pelos súditos, que idolatravam o casal real. Então, Admeto adoeceu repentinamente, tomado por uma enfermidade que parecia não ter cura. Pressentindo que ia morrer, invocou seu protetor Apolo. O deus o tranquiliozou, dizendo que a promessa estava de pé,
tudo estava acertado com a Morte. Esta, no entanto, exigia uma compensação: ela pouparia Admeto se alguém se oferecesse para morrer no lugar dele. Como era um rei muito benquisto, acharam que não haveria problema em satisfazer aquela condição.
Mas Apolo enganou-se: ninguém quis assumir o lugar do pobre rei enfermo, nem mesmo seu pai e sua mãe, que já eram bem velhinhos. Ao saber disso, a doce Alceste aprresentou-se como voluntária, alegando que não poderia mesmo, continuar vivendo depois que o marido morresse. Admeto chorou de gratidão, e suas lágrimas se misturaram com as dela, numa tocante cerimônia de adeus, que a Morte interrompeu, para levar a raínha. Quando o pai veio lhe dar os pesâmes, Admeto inconsolável, investiu contra ele acusando-o de egoista e insensível. O velho retrucou dizendo que gostava muito da vida para desperdiçar o pouco que lhe restava, e que egoista era ele e, ainda por cima covarde - por ter se deixado substituir pela mulher.
Aconteceu, na versão escrita por Eurípedes, que o invensível Hércules, que era amigo do casal, enfrentou corajosamente a Morte e conseguiu trazer a raínha de volta. Aquele desfecho surpreendente teria sido um final feliz? Eurípedes encerrou sua peça com uma nota perturbadora: Admeto ficou radiante, mas Alceste não emitiu umsa só palavra ao se reencontrar com o marido.
Uns dizem que ela estava muda de espanto com o que tinha visto no outro mundo. Sem dúvida era espanto, mas o motivo era bem outro: ao passar para o outro mundo, pode ver, pela vez primeira, o avesso de nossas vidas, e tinha compreendido que o amor e a morte, a generosidade e o egoismo, a coragem e a covardia se entrelaçam, inseparáveis, para formarem essa figura complexa, rica e imperfeita que é todo e qualquer ser humano.

sábado, 5 de setembro de 2009

Ganhar e Perder

(Odisses e as Sereias - John William Waterhouse)

Terminada a Guerra de Tróia, o herói Ulisses levaria mais de dez anos para chegar à Ítaca, sua terra natal, onde Penélope, sua esposa, ainda o aguardava. Naquele longo caminho de volta, tudo parecia conspirar contra o seu retorno ao lar. Obrigado a parar em ilhas desconhecidas, Ulisses foi enfrentando um perigo após o outro. Tempestades terríveis, povos selvagens e seres monstruosos foram destruindo seus navios e dizimando seus companheiros, até que, no último naufrágio, foi lançado numa costa desconhecida, junto à boca de um rio, quase morto de exaustão. Cauteloso, arrastou-se para dentro de um arbusto, onde adormeceu em seguida. A preocupação era desnecessária, porque agora ele estava na terra dos feácios, povo próspero e pacífico que iria acolhê-lo muito bem.
O perigo era Nausica, a graciosa filha do rei. Em sonho, uma deusa lhe apareceu avisando que estivesse preparada para casar-se quando aparecesse o homem certo. Assim, quando acordou, reuniu suas aias e levou seu enxoval, num carro de bois, até o rio para arejá-lo. Enquanto as roupas secavam ao sol, elas se divertiam alegremente e seus gritos despertaram Ulisses. Ao vê-las tão inofensivas, cobriu sua nudez com galhos e deixou o arbusto. Com os cabelos e o corpo cobertos de sal, êle ostentava uma aparência assustadora. . Todas correram a fugir dele, menos Nausica, que manteve sua dignidade de princesa se quedando ali. Então, foi a ela que Ulisses se dirigiu, com palavras escolhidas que caiam suavemente como flocos de neve: comparou-a a uma jovem palmeira verdejante de incomparável beleza, que um dia contemplara com espanto junto ao templo de Apolo, e implorou sua proteção. Impressionada, a jovem mandou que lhe dessem roupas novas e óleo para banhar-se. Quando Ulisses voltou do rio, ela admirou a nobreza de seus traços e imaginou que era ele o homem ao qual a deusa se referiu em sonho. Antes de chegarem ao palácio, ela já o estava amando.
Os feácios exultaram ao saberem que ali estava Ulisses, um dos heróis de Tróia. O rei Alcino ofereceu-lhe a mão de Nausica e, com ela, o futuro poder sôbre toda aquela gente rica e feliz. A tentação dessa oferta fez Ulisses vacilar. Mas, como sabemos, ele preferiu voltar para Penélope. Na hora de partir, numa despedida tocante, Nausica lançou-lhe um olhar apaixonado e pediu, bela como uma jovem deusa, que nunca mais a esquecesse. Ulisses, tomado pela emoção, prometeu que pensaria nela enquanto fosse vivo. Disse e virou-lhe as costas para não ver mais aquele rosto suplicante, cheio de promessas maravilhosas.
A tristeza que o invadia era velha conhecida, pois vinha da dor que sentimos pela perda irreparável que se esconde em cada escolha que fazemos. Deixava Nausica para sempre, é verdade, mas em nome de um amor que o tinha mantido vivo ao longo de tantos anos. Agora, ia voltar para Ítaca e reencontrar sua mulher.