sexta-feira, 28 de agosto de 2009

A Estátua que Canta


A estátua de Moisés, famosa escultura de Michelangelo, não lhe respondeu quando ele, impressionado com a perfeição da sua própria obra, teria batido com o cinzel no joelho da mesma e dito: "Fala". Ela não respondeu - mas poderia. Afinal, quinze séculos antes disso, ilustres figuras e curiosos de todos os tipos, visitavam o Colosso de Memnon, famosa estátua do antigo Egito, só para ouvi-la cantar. Talhada em pedra escura, aquela estátua ficava no famoso Vale dos Reis, próximo do Rio Nilo. Como estava voltada para leste, ela recebia em pleno rosto, os primeiros raios de sol da manhã. Cerca de uma hora após o nascer do sol, ela soltava um som vibrante, pungente como o romper de uma corda da lira. O famoso imperador romano Adriano, e sua esposa Sabina, estiveram lá, como atesta o pedestal que ele mandou gravar com as palavras "audi Memnonem" - "Eu ouvi Memnon".
Avariada por um terremoto, a estátua foi restaurada no Século III, porém emudeceu. A razão física daquele som e a posterior perda do mesmo não vem ao caso. Paras os antigos só podia ser coisa dos deuses. Para uns, era o filho da Aurora, Memnon, morto na flor da idade, que se queixava cada vez que via sua mãe pintar o céu com seus tons de rosa. Para outros , era Apolo, o deus do Sol, que devolvia a saudação da estátuta com uma onda de energia irradiante.
Fosse lá o que fosse, existe nessa estória uma metáfora antiga sobre o papel masculino que Michelangelo não podia entender: seja estátua, seja mulher, não é batendo nela que a faremos falar. Nem com uma ordem ou comando. Também não com império e poder. A mulher precisa receber em cheio um olhar que a ilumine, que aqueça sua alma e a faça desabrochar, como os raios de sol do Egito. Ela é assim desde menina, quando cabe ao olhar do pai mostrar-lhe o quanto ela é afortunada por ter nascido mulher. Depois, é nos olhos de seu homem que ela precisa colher essa luz inconfundível que vai, muito mais do que o espelho, convencê-la de que ela é bela e desejável. Se ela for tratada assim, nunca vai deixar de falar. Com sorte, é até possível que cante.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Pérolas da Mitologia - Órgão Sexual


A mitologia conta que o grande senhor do Olimpo, Zeus, costumava disfarçar-se em algum animal para perpetrar suas conquistas amorosas. No entanto, isso não aconteceu com Alcmena, que seria a mãe de Hércules, como fruto de sua união com Zeus. Com ela, ele agiu diferente. Ela era esposa do digno Anfitrião, general tebano que tinha se afastado de casa por razões de guerra. Quando o general voltava para casa, depois de vencidos os combates, o ardiloso Zeus assumiu sua aparência e se apresentou a Alcmena, que nada desconfiou. Recebeu o impostor como se fosse o marido e sufocou-o com seus beijos e abraços. Como Zeus queria tranquilidade para desfrutar a sua nova conquista, mandou que Hélios, o deus do sol, ficasse dois dias sem aparecer e mandou Hipnos, o deus do sono, deixar o mundo dormindo todo esse tempo, propiciando ao senhor do Olimpo uma longa noite nos braços de Alcmena. Quando o verdadeiro Anfitrião chegou em casa, estranhou muito que sua mulher não quisesse saber detalhes da sua viagem nem estivesse disposta a recebe-lo no leito, alegando que assim já era demais. Desconfiado, Anfitrião consultou o adivinho Tirésias, que lhe revelou que Zeus tinha honrado seu lar com uma visita pessoal.

Tal engano com o parceiro, ainda que pareça improvável, tem sido aproveitado por muitos autores, e, no cinema, já foi utilizado dezenas de vezes. Ora, como não perceber que o outro é um impostor? Afinal, não é na cama que tudo fica desvendado? Quanto a isso, parece que existem opiniões bem diferentes. Para uns, é ali mesmo, na fulgurante luz do sexo, que aparece a verdade, quando as ilusões que encobriam nosso parceiro se dissipam durante a noite, fazendo-nos despertar ao lado da realidade. Quantas Alcmenas foram dormir com um deus e acordaram com um animal? Poucas tiveram a felicidade de fazer o caminho inverso, mas essas não conhecemos, pois elas procuram não comentar, para não despertar inveja. Para outros, no entanto, é na cama que mais nos iludimos, mentindo sobre nós mesmos e sobre o nosso parceiro, e não somos capazes de saber, no escuro, quem é o impostor: se eu, se ele ou se ambos. Para outros mais, enfim, talvez os mais espertos, há locais mais adequados do que a cama para buscar a verdade, pois ali é o lugar privilegiado onde se une a realidade da pele com a criatividade e a fantasia do cérebro, nosso órgão sexual por excelência.

Pérolas da Mitologia - Amor Verdadeiro


Uma das mais belas e tristes histórias de amor da antiguidade envolve Demofonte, que ao voltar da Guerra de Tróia, parou o seu navio no pequeno reino da Trácia, onde conheceu Filis, a bela filha do rei. Eles se enamoraram no momento em que se viram. Vendo os jovens assim tão apaixonados, o rei consentiu no casamento, instituindo o futuro genro como herdeiro de seu trono. Antes do casamento, Demofonte explicou que precisava fazer uma breve visita a seu pai, em Atenas, afinal não o via há muitos anos, desde que partira para a guerra. Rogou pela compreensão de Filis, jurando por tudo que estaria de volta em quatro meses, para viver para sempre ao lado da amada.
Depois de ver a lua cheia brilhar por quatro vezes, Filis começou a contar os dias e as horas, como só os apaixonados sabem contar. Vivia junto a praia, observando o horizonte, e várias vezes se iludiu julgando ter avistado ao longe, as velas brancas do navio de Demofonte. Ele não aparecia e ela inventava mil desculpas para sua demora: talvez o pai o tivesse retido por mais tempo ao seu lado, ou algo de ruim tivesse acontecido no caminho - e ficava arrependida só de pensar nisso. Então corria a pedir aos deuses que o protegessem. Mas, na medida em que o tempo passava em branco, suas esperanças diminuíam, e, aos poucos, começou a ser dominada pelos fantasmas de sempre: talvez tinha sido enganada por palavras doces, seduzida e abandonada! Eram falsas as juras dele, como eram falsas as lágrimas que ele tinha derramado ao partir. Talvez nem, se lembrasse mais dela e, a essa hora, poderia ter encontrado outro amor e até já estar casado.
Tomada pelo desespero, não suportou mais o sofrimento e resolveu se enforcar, e assim teria feito, se os deuses, apiedando-se dela, não a tivessem transformado numa triste amendoeira. Quando Demofonte, que se atrasou contra sua vontade, finalmente regressou três meses mais tarde, só lhe restou abraçar-se a árvore, reafirmando entre soluços, o amor que sentia por Fílis. Nesse instante a amoreira ficou coberta por delicadas flores, que deviam estar ali, aguardando apenas que um abraço apaixonado como aquele lhe desse a força e a seiva de que precisavam para desabrocharem.

Afinal, esse é o grande prodígio de um amor verdadeiro: ele nos torna mais vivos e mais floridos, ele nos devolve qualidades que julgávamos ter perdido e nos faz descobrir, com surpresa, que tínhamos outras qualidades de que sequer suspeitávamos.

domingo, 23 de agosto de 2009

Grécia - A Vida la Fora

(Busto de Aristóteles - Museu do Louvre, Paris)
O extraordinário filósofo Aristóteles foi tutor e professor do lendário Alexandre Magno. Daquela relação tão ilustre, contada de muitas diferentes maneiras, tantas que já não se sabe o que aconteceu de verdade e o que é fantasia. É o caso de uma estorieta picante que alcançou grande sucesso na Europa medieval.
Consta que Aristóteles um dia cometeu a besteira de sugerir a Alexandre que se afastasse de sua belíssima namorada Fílis, para se concentrar mais nos estudos. Alexandre ficou aborrecido e contou para ela o que seu mestre pedira. Então Fílis resolveu agir. No dia seguinte, como sempre fazia, ao raiar do dia, Aristóteles já estava estudando na biblioteca do castelo, quando ouviu, por uma janela que dava para o jardim, a linda voz de Fílis, que cantava despreocupadamente. Ao se aproximar da janela da biblioteca que ficava no térreo, avistou a moça que passeava com os pés nus na relva úmida, os cabelos ainda molhados do banho, com a túnica desamarrada na cintura, entreabindo-se a cada passo que dava. Dizem que Aristóteles perdeu a compostura , mandou a filosofia às urtigas e quase se precipitou janela afora, completamente enfeitiçado por aquela figura sedutora. Pediu que ela se aproximasse e implorou que ela se entregasse a ele, nem que fosse uma só vez. Ela disse que somente faria isso em troca de um pequeno favor, que seria mais um capricho da parte dela: ele tinha que se por de quatro no jardim e deixar ela montar em suas costas, como se ele fosse um cavalo mansinho. Em menos tempo em que se diria o nome dele, o mestre já estava lá fora em posição de monta. A moça colocou-lha na boca um freio de seda vermelho, cavalgando-o pelo jardim, fazendo evoluções entre os canteiros, enquanto entoava uma canção de triunfo. Era a deixa para Alexandre abrir sua janela e simular uma escandalizada surpresa diante do que via: "Mas mestre, com o pode ser isso?" Aristóteles, apanhado no flagrante, ainda tentou usar a cena para dar mais uma lição a seu pupilo: se ele, sábio e experiente, tinha se tornado um simples joguete nas mãos daquela mulher, o que se poderia esperar de um jovem impetuoso como Alexandre.

Apesar de pouco verossímel, essa estória contém alguma coisa que até hoje nos encanta. Em parte, pelo secreto prazer de ver o mundo virado do avesso, como o grande mestre de Alexandre reduzido a uma cavalgadura. Em parte, também, é a confirmação maliciosa de que a mulher e a natureza, juntas, constituem a força que governa o planeta.

Árabes - Jogos de Xadrez


A estorieta abaixo não foi extraída da mitologia grega, sendo um produto já da nossa era, mas se encaixa perfeitamente no espírito daquelas que temos apresentado, focalizando também a velha questão de gênero entre homens e mulheres.

Os árabes ao ocuparem a Espanha no século XVIII e trouxeram consigo o jogo de xadrez, apreendido por eles em algum lugar do oriente. Aquele jogo logo se difundiu por todo o continente, conquistando até jogadores improváveis como os truculentos viquingues. Como sabemos, o jogo consiste num tabuleiro de 64 casas, dois exércitos completos, com seus reis, rainhas, cavaleiros e peões, que se confrontam a cada partida sob a batuta dos jogadores.
Antes um pouco, lá pelo século XVII, havia surgido na Espanha o jogo de damas, que alguns enxadristas desdenhosos, chamaram de "xadrez das mulheres", cometendo um preconceituoso erro de avaliação, pois o jogo de dama nunca pretendeu ser um substituto ou simplificação do jogo de xadrez. As peças são diferentes, seus movimentos são diferentes e as regras são completamente diferentes. Apenas o tabuleiro é o mesmo. Esse detalhe criou um inevitável vínculo entre aqueles jogos tão diferentes, inclusive na maneira de comercializá-los. Nos natais de nossa infância eles sempre vinham juntos, numa espécie de dois-em-um, com as peças de um e outro misturadas na mesma caixa.
Muitos anos depois daqueles natais, começo a desconfiar que essa pode ser uma maneira esclarecedora de como homens e mulheres se relacionam. Ambos se encontram diante do mesmo tabuleiro, mas ele está jogando xadrez, enquanto ela joga damas. Dessa forma, pouco vai adiantar que ambos se esforcem para que a vida em comum dê certo. Tudo será em vão: como pensam que estão jogando o mesmo jogo, nenhum dos dois consegue compreender os movimentos que o outro faz - seja no orçamento doméstico, na educação dos filhos, na sexualidade ou no trabalho. Ele então a acusa de não saber jogar, lamentando que ela jogue tão mal, e a vida deles passa a ser um inferno.
A solução é simples, mas difícil de por em prática: os poucos casais felizes com a união procuram se observar com interesse e respeito mútuo, estudando o jogo de seu parceiro e divertindo-se com as diferenças. Um deve procurar aprender as regras do outro, não para segui-las, mas para entender, finalmente, que é natural que existam muitos pontos importantes sobre os quais os dois nunca irão concordar e que, sendo jogos distintos, nunca haverá vencedor - apenas o prazer de jogar.

sábado, 22 de agosto de 2009

Grécia - O Verdadeiro Herói

(Leonidas nas Termopilas - Jacques-Louis David Museu do Louvre, Paris)
Os gregos que lutaram na batalha das Termópilas foram verdadeiros heróis. Ali um punhado de espartanos atrasou o avanço do gigantesco exército persa o suficiente para que as forças de toda a Grécia pudessem se arregimentar. O inimigo era Xerxes, filho de Dario, trazendo um exército tão fabuloso que os homens da retaguarda precisavam marchar cinco dias para reunirem-se aos que já tinham chegado. A lenda fala em um milhão de homens, mas os historiadores reduzem para 250.000 soldados. À sua frente, num estreito desfiladeiro junto à costa, Leônidas de Esparta, os aguardava no comando de 300 homens, que ele escolhera entre os jovens que já tinham um filho varão, sabendo que lutariam até a morte para garantir a glória eterna para os seus descendentes.
Xerxes esperava que os gregos desistiriam ao ver seu poderio. No entanto, um espião persa conseguiu observar secretamente o desfiladeiro e voltou com a perturbadora notícia que alguns espartanos faziam exercícios físicos enquanto outros lavavam e prendiam cuidadosamente os cabelos. Um grego que lhe ajudava sentenciou: "Senhor, aqueles lá vão morrer lutando, pois eles sempre se penteiam com apuro na véspera de uma grande empreitada". E não deu outra. No raiar do dia seguinte os adivinhos anunciaram para Leônidas que o destino dos gregos estava traçado. No combate do primeiro dia, ondas e ondas de soldados persas, impelidos a golpes de chicote, avançaram em vão contra a muralha humana que guardava o desfiladeiro, fazendo Xerxes compreender que seu exército tinha muito mais soldados mas muito menos homens que o oponente. Os gregos resistiram mais dois dias, até que os persas, guiados por um traidor chamado Efialtes, contornaram o desfiladeiro e atacaram por trás, exterminando os poucos sobreviventes, em cujo túmulo o poeta Simônides escreveu: "Estranho, vá dizer aos espartanos que nós jazemos aqui, obedecendo às suas ordens".

Vinte séculos depois, nos desfiladeiros modernos, o heroísmo ainda consiste nessa perseverança, nesse denodo, nessa insistente determinação de cumprir com o dever que a própria vida nos impõe, mesmo sabendo que, muitas vezes, essa luta pode ser em vão e que, mais cedo ou mais tarde, persas e traidores podem nos derrotar. Isso não importa pois, herói é quem pode dizer, como o velho marinheiro que dirigia Posêidon durante uma tempestade: "Ó deus dos mares, tu podes me poupar, se quiseres, ou podes me destruir, mas seja qual for tua decisão, vais me encontrar com o braço firme no leme deste navio".

Pérolas da Mitologia - A Verdade é um Perigo

(Apolo e a Píton - Museu Britânico, Londres)
Ninguém gosta de receber más notícias, nem mesmo os deuses. Apolo, o deus dos oráculos, devia saber melhor do que ninguém o quanto a verdade pode doer. Ele amava Corones, uma jovem princesa de Tessália, mas ela gostava de outro, um simples mortal, com que se encontrava às escondidas. Desconfiado, Apolo mandou o corvo, um de seus auxiliares alados, vigiar de perto a faceira princesinha. Pobre corvo. Quando veio relatar os encontros furtivos de Corones, Apolo ficou furioso e resolveu castigá-lo, mudando a cor de suas asas, branca como a neve, para o preto que os corvos usam até hoje.
Muitos reis e tiranos do passado agiram como Apolo, punindo o mensageiro por causa do teor da mensagem. Plutarco conta que, durante a campanha do comandante romano Lúculo, contra alguns reinos da Ásia, quando sua legião entrou na Armênia, os postos avançados desta mandaram avisar ao rei local que as forças romanas se aproximavam. O rei Tigranes ficou tão enfurecido que mandou decapitar o mensageiro, fazendo com que, a partir daí, ninguém ousou contar-lh coisa alguma. Enquanto os romanos apertavam o cerco, Tigranes continuava inerte, sem ter a menor idéia do que estava acontecendo, ouvindo apenas a voz de seus bajuladores, que lhe diziam que Lúculo já devia estar voltando para Roma, atemorizado com a força do exército romeno - até que o amigo favorito do rei tomou coragem para anunciar-lhe que a derrota era iminente, como de fato aconteceu.
Pior fez Côtis, um certo rei da Trácia, dissoluto e beberrão, que meteu na cabeça que haveria de passar uma noite de amor com a deusa Atena, uma das deusas virgens do Olimpo. Para uma ocasião tão importante, preparou um banquete numa mesa luxuosíssima, numa alcova ricamente decorada, no centro da qual dispôs uma cama com lençóis e travesseiros dignos da ilustre convidada. Depois de tudo preparado, Côtis se pôs a beber vinho, aguardando a chegada de Atena. Como o tempo passasse e nada da deusa aparecer, mandou um guarde verificar se ela não tinha se perdido nos corredores do palácio. Quando o guardo retornou dizendo que não havia ninguém, o rei o matou ali mesmo.
Mais tempo se passou e Côtis mandou um segundo guarda, e a cena se repetiu. Quando mandou o terceiro guarda, este, apavorado com o que acontecera com seus colegas, voltou dizendo que a deusa estava chegando ao palácio, pois sofrera um pequeno atraso, dito o quê, fugiu para o mais longe possível.

Dessas três estórias, tiramos pelo menos duas lições: se fores o destinatário, nada que fizeres poderá alterar o conteúdo da mensagem. Mas se fores o mensageiro, lembra-te do antigo provérbio árabe: quando fores dizer a verdade, deixa o teu cavalo pronto e fique com um pé no estribo.

Pérolas da Mitologia - A Estrada de Atenas

(As façanhas de Teseu, Museu Britânico, Londres)
Teseu era pouco mais que adolescente quando soube que era filho do rei de Atenas. Despediu-se, então, da mãe e do avô, com os quais vivia, dizendo-lhes que precisava conhecer seu pai. A mãe, que já esperava por esse dia, recomendou-lhe que viajasse pelo mar, pois o caminho terrestre para Atenas era cheio de bandidos sanguinários. Porém, o jovem Teseu, que muito admirava Hércules, que no passado muito havia se confrontado com aqueles bandidos, recusou a indigna segurança do mar e preferiu lançar-se pela estrada afora, resolvido a não fazer mal a quem quer que fosse, mas se defenderia contra os que tomassem a iniciativa da violência.
Ora, assim que inicou o percurso já se defrontou com o cruel Perifetes, que costumava esmigalhar o crânio dos infelizes com uma clava de bronze. Teseu o desarmou e aplicou-lhe na testa um golpe com aquela arma terrível, adotando-a para si. Em seguida foi a vez do do gigantesco Sínis, que se divertia em amarrar os pés da vítima a dois pinheiros vergados até o chão, para em seguida soltá-los de chofre, rasgando-a em dois pedaços. Depois foi Círon, cujos pés os viajantes eram obrigados a lavar tremendo de pavor, enquanto ele os empurrava pela borda do penhasco até o mar, onde eram devorados por uma tartaruga gigantesca. Mais adiante foi Procusto, sinistro estalajadeiro que amarrava os hóspedes durante o sono para adequá-los ao tamanho do leito: os que eram menor do que a cama, ele os estirava com cordas e roldanas; quando eram maiores, ele cortava as partes excedentes a golpes de machado. Teseu foi implacável com eles, submetendo cada um à tortura que infligia às vítimas.

Ali Teseu inicou sua carreira de sábio governante, defensor do bem e da justiça. Sabia que amar seu semelhante nunca significou inocentá-lo de seus crimes, atribuindo toda a culpa ao mundo ao seu redor. Conhecendo bem demais o lado escuro da natureza humana, não acreditava que o mal seria um dia extirpado, quando a sociedade fosse melhor. O mal está lá, onde sempre esteve, à nossa espreita, nas curvas dessa longa estrada da vida, e nosso dever é enfrentá-lo.

Pérolas da Mitologia - Momento Mágico

(Afrodite de Knidos, Praxiteles - Museu do Vaticano - Galeria das estátuas)
Frinéia, uma simples cortesã, galgou a galeria dos personagens inesquecíveis do antigo mundo grego, ao lado de filósofos, poetas e grandes estadistas. Ela era especial, pois, ao contrário das outras, que passeavam com túnicas transparentes para mostrar os detalhes do corpo, Frinéia usava um manto comum para manter sua beleza escondida dos olhares indiscretos. A ninguém, a não ser para os íntimos, mostrava seus braços ou seus ombros magníficos, e jamais frequentou os banhos públicos, hábito tão em voga naquela época. Mas um dia, durante as grandes festas dedicadas a Posêidon, diante de milhares de participantes vindos de todos os pontos da Grécia, ela avançou no meio da multidão reunida junto à praia e ali, no ponto em que o mar encontra a areia, sem dizer palavra, deixou cair o manto a seus pés e entrou lentamente na água, completamente nua, a não ser pelos longos cabelos soltos que caiam até os quadris. Entre os espectadores maravilhados, estava Praxíteles, o mestre escultor de Atenas, que imortalizou aquela visão quase divina ao trasnspor as formas de Frinéia para o mármore polido da famosa estátua de Afrodite, tornando-se o primeiro escultor a desnudar completamente o corpo da mulher.
Antes dele, tanto as deusas como as simples mortais apareciam sempre vestidas e os artistas mais ousados se limitavam a representá-las usando vestes molhadas, coladas ao corpo, para realçar suas formas. Praxíteles, com sua Afrodite, inspirado em Frinéia, fixou o modelo quase definitivo de nu feminino na arte ocidental, o da vênus pudica, ou seja, da mulher que tenta esconder sua nudez ao ser surpreendida sem roupa. Mais tarde, numa variante do que fez o escultor, encontramos no "Nascimento de Vênus", do pintor Boticelli, em que Vênus(como Afrodite era chamada pelos romanos), cruza um braço à sua frente para ocultar os seios, enquanto mantém o outro baixo, de modo a deixar sua mão escondendo o púbis, numa atitude que, como se vê, atrai nosso olhar exatamente para os pontos que estão sendo escondidos.
Não foi por acaso que a posteridade elegeu a Afrodite de Praxíteles como o símbolo do pudor, esse ingrediente indispensável para existir o erotismo. Afinal, ela era a deusa do amor e devia entender muito bem que sem a luz não existe sombra, e que, sem esse jogo tão feminino de esconder o que depois vai mostrar, todos nós - homens e mulheres - não conheceríamos aquele momento mágico de transgressão e de vertigem em que o manto de Frinéia finalmente cai no chão.

Pérolas da Mitologia - Corpo e Alma

(Eros e Psique - Casanova, Museu do Louvre, Paris)
Mesmo aqueles que não acreditam nesse indefinível sentimento que é o amor, não poderão deixar de apreciar a magnífica obra de Antonio Casanova denominada "Eros desperta Psiqué com um beijo". Aquele artista soube extrair da pedra fria, com rara maestria, um daqueles raros momentos em que o tema se encontra com a forma e a intenção, para criar uma obra que jamais nos deixará indiferentes.
O escultor acertou ao escolher um mito como motivo, agradando assim a gregos e troianos, e, além disso, também cativou aos que vêem no amor uma realidade mais profunda, que não se deixa capturar pelas malhas da razão. Segundo, porque acertou igualmente escolhendo tal mito, que narra os encontros e desencontros e até o final feliz - coisa tão rara - de dois encantadores personagens: Eros, o deus do amor, filho de Afrodite, e Psiqué, belíssima princesa, cujo nome também significa alma (não por acaso) na língua grega.
Os dois casam secretamente e vivem felizes, mas o deus só vem encontrá-la depois que as luzes se apagam, pois ela não podia saber quem ele era.Psiqué concordou com isso, mas, certa noite, vencida pela curiosidade, espera que ele adormeça e acende uma vela. Maravilhada com o que descobriu, deixa cair uma gota de cera quente no ombro dele. Ela rompeu o trato e Eros, magoado, se afasta, disposto a não vê-la nunca mais. Psiqué arrependida, vaga pelos caminhos procurando em vão encontrá-lo. Temendo que pudesse encontrar Eros, Afrodite atraiu a princesa para uma armadilha que a prostrou num sono mortal. Foi quando os deuses, que viam o casal com simpatia, avisaram Eros do acontecido. Então Eros desceu até onde ela estava e a despertou com um beijo salvador.

Foi essa a cena que o cinzel do escultor eternizou em mármore: Eros, com as asas ainda abertas, parece ter descido do céu naquele instante,, enquanto Psiqué, de olhos cerrados, enlaça-o com delicadeza e ergue o rosto para oferecer-lhe os lábios. Os corpos são magistralmente modelados de sorte a não permitir que nosso olhar se afaste das duas cabeças que se aproximam,naquele momento culminante de todas as histórias de amor, em que as duas bocas estão a ponto de se unirem. O artista conseguiu fixar toda a magia do beijo, ao mesmo tempo em que põem em contato o corpo e alma de duas pessoas, permitindo que elas troquem entre si a ternura, o desejo e a paixão que sentem reciprocamente. Às vezes, a tudo isso ainda vem se somar o amor, algo que não sabemos definir, mas que sabemos reconhecer quando aparece - ou quando simplesmente se acaba.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Pérolas da mitologia - Segredos de mulher

(O nascimento de Venus - Botticelli - Galleria degli Uffizi, Firenze)
A mais bela das deusas, Afrodite, era odiada pelas outras deusas desde o momento em que colocou seus pés no Olimpo. Ela surgiu toda nua, do meio da espuma das ondas do mar, numa grande concha nacarada que o vento carregou até a costa de Chipre. Ali foi acolhida alegremente pelas Horas, divindades benfazejas, que a vestiram, pentearam e enfeitaram. Um carro puxado por pombos levou-a até o Olimpo, onde chegou sob aplausos dos deuses. Eles ficaram tão atraídos por sua beleza e sensualidade, que não houve um só deles que não começasse a pensar num modo de possuí-la. Percebendo o desejo deles, as deusas passaram a odiá-la com todas as forças que tinham.
Para evitar confusão, Zeus a casou com Hefesto, o ferreiro divino. Mas logo surgiu um relacionamento secreto entre ela e Ares, o deus da guerra. O marido só ficou sabendo quando Hélio, o deus do sol, que tudo via lá do céu, contou-lhe sobre o que os dois faziam na sua ausência. Hefesto decidiu vingar-se usando suas habilidades inigualáveis de artesão. Teceu uma rede finíssima como a da aranha, mas tão resistente quanto o próprio diamante, e com ela montou uma armadilha no teto do quarto, por sobre o próprio leito conjugal, que também era usado pelos amantes. Depois anunciou à esposa que precisava viajar, demorando-se por alguns dias fora de casa. A presa caiu no laço: Ares veio ter com Afrodite, e os dois, levados pelas asas do desejo, correram para a cama e para sua própria perdição. A rede caiu sobre eles e deixou-os completamente imobilizados, presos uma ao outro no abraço proibido. Hefesto, que observava escondido, surgiu então junto ao leito, rubro de cólera, e se pôs, em altos brados, a conclamar os imortais para que viessem testemunhar o ridículo da cena. Todos os deuses acorreram, felizes pela chance de contemplarem, à vontade, a nudez de Afrodite, que ardia de vergonha. Mas as deusas não vieram. Embora detestassem a rival, nenhuma quis participar daquela cena constrangedora.
Porque as deusas não se entregaram às delícias da schadenfreude, palavra alemã que expressa aquela doce alegria pelo sofrimento dos inimigos. Ninguém sabe. Homero sugere que elas pouparam Afrodite por causa do pudor natural de seu sexo. É provável que as próprias deusas não saibam explicar por que não foram lá. As mulheres sabem coisas dos homens que eles mesmos ignoram. Mas também é certo que elas não detém a chave dos próprios segredos. Elas também não sabem tudo. Vale para elas o que disse Heródoto a propósito da Esfinge: os enigmas do antigo Egito eram enigmas também para os próprios egípcios.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Pérolas da mitologia - Povos diferentes

(Amazona Ferida, Fidias - Museus Capitolinos - Roma)
Desde que essa estória foi gestada há mais de 2500 anos atrás, na velha Grécia, pouca coisa mudou entre homens e mulheres. Consta que os gregos derrotaram as ferozes Amazonas, tribo que formou o maior matriarcado de que tem notícia na história. No trajeto, elas se amotinaram e jogaram a tripulação grega no mar. Como não sabiam navegar, ficaram à deriva no mar, ao sabor do vento, até que a correnteza as levou às praias da selvagem Cítia. Ali elas se apropriaram de cavalos e começaram a pilhar o interior daquele país.
No começo, os citas ficaram perplexos. Não sabiam quem eram aqueles guerreiros cuja fala não conheciam e também sua maneira de vestir. Contudo, após o primeiro confronto, examinando um cadáver observaram que eram mulheres. Então decidiram que valia a pena ter filhos com aquelas valorosas guerreiras. Para isso, mandaram que os solteiros fosse, acampar perto delas e as observassem em tudo, porém sem hostilizá-las em nada. Feito isso, quando elas atacavam, eles recuavam, sem luta, para convencê-las de suas intenções pacíficas. Admirando-os pelo valor que tinham demonstrado em combate e admirando-os pela atitude amistosa agora, elas deixaram os jovens citas ficarem onde estavam acampados. Sendo homens e mulheres, não é preciso dizer que a distância entre os dois acampamentos foi encurtando a cada novo dia.
No final de cada dia, elas passaram a se afastar do acampamento, sozinhas ou aos pares, a fim de cumprirem o que a natureza manda. Os citas fizeram o mesmo. Quando um deles encontrou o outro na beira do rio, o inevitável aconteceu, para alegria de ambos. Depois ela avisou, por meio de sinais, que voltaria no dia seguinte com uma amiga, e que ele fizesse o mesmo. Em pouco tempo todos formavam casais. O passo seguinte foi unir os acampamentos, passando a morarem juntos.
Os homens(como até hoje), não conseguiram aprender a língua das mulheres, enquanto elas rapidamente passaram a entênde-los.
Quando eles propuseram que elas fossem morar com eles junto ao seu povo, elas recusaram: "Gostamos de caçar e cavalgar livremente.Jamais viveremos como as mulheres citas, que passam seus dias ocupadas com afazeres domésticos. Se querem ficar conosco, vamos nós, todos juntos, achar um lugar para começar vida nova".
Os jovens concordaram e todos levantaram acampamento e viajaram para muito longe, para o norte, onde se tornaram a tribo dos Sauromatas, cujas mulheres nunca deixaram de cavalgar e lutar ao lado de seus homens, provando que o segredo da harmonia entre os sexos é o gosto por essa estranheza recíproca e a aceitação de que existe uma ignorância entre eles que nunca será superada, pois são povos diferentes.

Pérolas da Miologia - O indispensável mistério

(Eros Centocelle, Pompéia)
A filha de um antigo rei grego era tão bela que seus admiradores começaram a compará-la com a própria Afrodite. Enciumada, essa deusa ( os deuses da mitologia grega só eram diferentes dos mortais no poder que tinham e na sua imortalidade - em tudo o mais tinham as virtudes e os defeitos que encontramos entre os mortais: daí o ciumes de Afrodite) mandou seu filho, Eros, deus do amor e da paixão, flechar o coração daquela moça para fazê-la enamorar-se do homem mais feio do mundo. Eros bem que tentou mas apaixonou-se no momento que a viu, provando pela primeira vez, o doce veneno de suas próprias setas. A bela jovem chamava-se Psiquê, o mesmo nome que os gregos davam à borboleta e à impalpável alma humana.
Era tão bela que ninguém ousava candidatar-se à sua mão. Alarmados , os pais dela foram perguntar ao oráculo Delfos se um dia ela casar-se-ia. O oráculo foi claro: deveriam deixá-la , vestida de noiva, ao pé de certo rochedo, onde seu futuro marido iria buscá-la e que ele não seria um simples mortal.Os pais, que não ousaram contraria a voz sagrada de Delfos, deixaram Psiquê no local indicado, onde ela adormeceu. Um vento misterioso então a transportou para um rico palácio no alto do monte, onde ela foi banhada e penteada por mãos invisíveis. "À noite," disse-lha uma voz sem dono, "teu marido chegará". E assim foi: na escuridão absoluta, ela não viu quando Eros se aproximou. Apenas sentiu que alguém deitava ao seu lado, no fresco leito nupcial, abraçando-a com tanto carinho e paixão que ela perdeu todo o receio que tinha e deixou o prazer dominá-la. E assim, noite após noite, no decorrer dos meses, ela o recebeu em seus braços, sentindo-se cada vez mais enamorada daquele desconhecido que sempre partia bem antes do sol nascer.
Um dia percebeu que estava grávida. Criou coragem e pediu que ele se mostrasse. Foi em vão: "Se tu me vires, eu nunca mais voltarei" , disse ele. Mas ela estava decidida: numa noite em que ele dormia a seu lado, acendeu um candeeiro que iluminou todo o leito. Como já suspeitava, seu marido era um deus, o próprio Eros em pessoa, belo como devia ser um filho de Afrodite. A forte luz da candeia, porém, despertou Eros. Ele a olhou com mágoa e desapontamento, considerando-se traído, afastou-se em silêncio.
Essa história teve um final bonito: depois de muitos infortúnios, os dois enamorados acabaram vivendo felizes, juntamente com sua filha Voluptas. Psiquê tinha aprendido a lição: quem ama - e quer que isso dure - deve aceitar que o outro preserve um pouco de seu segredo, assim como aceitamos que a Lua tenha uma face brilhante e outra que nunca veremos. Afinal, é nas trevas do mistério que ela, a alma, ainda se encontra com Eros, a paixão, para que nasça, a cada noite, a indispensável volúpia.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Pérolas da Mitologia - O ser humano é diferente

Quando os deuses resolveram povoar este mundo, moldaram todos os animais com fogo e com argila, encarregando os titãs Prometeu e Epimeteu de equipá-los com o necessário para a vida de cada um. Epimeteu pôs mãos à obra e deu corpulência a uns, agilidade a outros, para uns deu garras e chifres, para outros não deu armas, mas dotou-os de asas ou pernas velozes para fugir; de uns fez predadores e de outros fez presas, mas deu a estes a benção de uma prole numerosa, para que nenhuma espécie viesse a ser extinta. Quando, notou que tinha esquecido o homem, que ali quedava nu, desarmado e indefeso. Para que ele sobrevivesse, Prometeu roubou dos deuses o fogo e a misteriosa arte de domá-lo.
Desprovido de escama, penas, concha ou pele espessa, o homem é o único animal de toda a criação, que se veste com o despojo dos outros. Quando chega a este mundo só sabe chorar e gemer, precisando ficar enrolado em paninhos, tolhido, por vários meses, ao passo que um pinto já anda solto pelo terreiro no dia em que rompe a casca do ovo. No início apenas chora, mas quando saberá caminhar, falar. Quando terá forças para mastigar o que come? Os outros animais já nascem com o instinto de sua espécie: uns correm, outros voam, outros ainda nadam, mas o homem não sabe coisa alguma que não tenha que apreender a duras penas - o único dom natural que recebeu foi chorar - talvez pelo simples fato de ter nascido.
No entanto, é essa ínfima criatura que irá comandar as demais, porque ele é diferente. De todos os seres, o homem é o único que conhece o luto e o riso, que procura o prazer de todas as formas e por todas as parte de seu corpo, que sofre com a ambição da riqueza e com a brevidade da vida, que se preocupa com a morte e até com o que vai acontecer depois que ele morrer. Mas, acima de tudo, é o único que não se conforma com o impiedoso ciclo animal, onde os mais fracos são aniquilados. Paradoxalmente a espécie humana começou a tornar-se a mais forte de todas somente quando começou a atrasar o seu passo para ajudar os retardatários na savana,
quando sentiu que devia carregar os feridos, proteger as crias abandonadas e dividir o alimento com os que não tinham ou que não podiam caçar - quando, em suma, assumiu que a fraqueza do outro era sua fraqueza também. A solidariedade, portanto, foi a força que fez o homem diferente das demais espécies deste planeta.

Pérolas da Mitologia (Por Claudio Moreno)

Se os heróis da mitologia fossem hoje recebidos no aeroporto, nenhum deles mereceria mais aplausos do que Prometeu, a quem devemos mais do que imaginamos. Sem ele não teríamos o fogo, que ele roubou aos deuses para nos dar de presente, pelo que tornou-se alvo da cólera divina.
O poeta Hesíodo, autor da versão mais famosa desse mito, conta que Zeus ficou tão furioso que resolveu punir exemplarmente os envolvidos naquele roubo. Para castigar Prometeu resolveu acorrentá-lo num rochedo e mandou que uma águia viesse devorar-lhe o fígado, que se renovava todos os dias (portanto os gregos antigos, já sabiam que o fígado é o único órgão do corpo humano capaz de regenerar uma parte perdida ).Para castigar os homens, recorreu ao expediente mais sutil, mas igualmente terrível, de criar a primeira mulher.
Embora Hesíodo descreva isso como vingança, o capricho com que Zeus desenhou e executou o projeto da mulher sugerem que o poeta , cego pelos seus preconceitos, não percebeu o orgulho que o rei dos deuses sentia pela obra que estava criando. Primeiro, ele ordenou a Hefesto, o artesão divino, que moldasse, na mesma argila usada para o homem, mas diferente: onde o homem era forte ela seria fraca, onde o homem era tolo ela seria sábia, onde o home era duro ela seria macia, onde o homem era ousado ela seria tímida, mas onde o homem tivesse medo ela teria coragem. Depois chamou todos os deuses para ajudá-lo, pedindo-lhes que dotassem a nova criatura com o melhor e o pior de si mesmos. Afrodite deu-lhe a graça e a beleza, mas também a vaidade; Atena deu-lhe habilidade com as mãos, mas também a curiosidade perigosa; Hermes deu-lhe o dom da persuasão, mas também a ensinou a enganar com as palavras e, assim por diante. Como se tratava de um presente que todos os deuses faziam ao homem, chamaram-na de Pandora, que em grega significa "a que tem todas as dádivas".
Com ela nasce o sexo feminino, mais fraco e delicado, de uma fragilidade que contrasta com a ação enérgica e decidida do sexo masculino: o homem caça, faz a guerra, derruba as muralhas de Tróia, derrota os persas e abate o leão de Neméia, enquanto ela canta diante do tear e espera que ele volte para casa. Dir-se-ia que tudo estava no lugar e não havia dúvida quanto ao papel de cada um - até que um dia ela tem um filho - e toda a falsidade daquele quadro vem à tona. Já no parto o homem fica desconcertado ao ver a força espantosa que sua frágil companheira consegue mobilizar, aceitando a dor e o cansaço num nível que seria insurpotável até para o mais rude guerreiro. Depois, à cabeceira de um filho doente, ele assiste, com respeito e admiração, àquela luta titânica que só as mães conseguem travar, noite após noite, contra o inimigo invisível e traiçoeiro que ronda o berço com suas asas negras. Então, com toda a humildade o homem compreende qual dos dois é, na verdade, o sexo forte, e agradece a Zeus pelo maravilhoso presente que recebeu.

Pérolas da Mitologia - Não me devem nada

A donzela guerreira Atalanta, teve uma infância infeliz como tiveram quase todos os heróis da mitologia grega. Quando ela nasceu, o rei Iasos, que precisava de um filho varão, foi aconselhado pelo oráculo a abandoná-la nas matas da vizinhança. Como sempre acontece, o servo encarregado daquela tarefa se apiedou da criança e a depôs no interior de uma caverna, implorando à deusa dos bosques, Artêmis, que protegesse a pequenina.
O auxílio veio na forma de uma ursa que recém havia perdido seus filhotes. Encontrando a bebezinha na sua caverna, por instinto, começou a amamentá-la e protegê-la. Alguns meses depois um caçador descobriu a criança naquela caverna e a resgatou, levando-a para sua casa e deu-lhe o nome de Atalanta. O tempo a transformou numa bela mulher, que vivia ao sol correndo pelos montes e pelos campos com seu arco e sua lança, exatamente como sua deusa protetora, Artêmis. Vestida com uma túnica muito curta, presa num só ombro, deixando livre seus movimentos e pouco escondia seu corpo ágil e flexível. Os que viam a virgem caçadora, ficavam extasiados com a sua beleza selvagem. Mas o temor de suas armas mantinha todos à distância.
Sua glória ocorreu na grande caçada ao javali gigante que devastava lavouras e aldeias da redondeza. A caçada atraiu jovens de toda a Grécia, fascinados pela chance de conquistarem honra e renome.
Ao final, quem abateu a fera foi Atalanta, que feriu mortalmente o animal com uma de suas flechas, conquistando o troféu tão desejado.
Ao saber dessa façanha, o rei Iaso chamou-a à sua presença e quis saber de onde ela viera. Os indícios eram eloquentes e o rei reconheceu em Atalanta a sua filha que julgava morta. Abraçando-a com orgulho, contou-lhe seu nascimento e lamentou não ter tido, na ocasião, coragem de contrariar a recomendação do oráculo. Ela também o abraçou, pois tinha sonhado com aquele momento e não ia estragá-lo com queixumes e cobranças de um tempo tão distante.
Não ia cobrar agora o que seu pai não lhe dera vinte anos atrás. Ele não devia nada. Iam recomeçar do zero e tratar de ser felizes.
Atalanta antecipava, assim, o que Epíteto viria a escrever: a pessoa comum culpa o outro por tudo o que lhe sai errado; o noviço em filosofia culpa sempre a si mesmo; o sábio, esse não culpa nem um, nem outro.

Pérolas da Mitologia - O sorriso do neném

Durante muito tempo o governo de Corinto esteve nas mãos de uma mesma família. Os Báquidas se apresentavam como descendentes do deus Baco. Para não arriscar o seu poder, sempre casavam com membros da própria família. Um dia, uma de suas filhas, Labda, feia demais para atrair um de seus primos, acabou casando com um jovem que não pertencia ao clã. O marido, ansioso por um herdeiro, consultou o oráculo Delfos, que previu para ele um filho em breve. Tal filho tomaria o lugar dos atuais governantes, iniciando uma nova era para Corinto.
Os Báquidas, descobrindo a profecia, decidiram agir assim que o parto de Labda ocorresse.
Quando o menino nasceu, sortearam dez entre eles e os enviaram à casa de Labda para matá-lo. Chegando lá pediram para -lo. Labda, desconhecendo o motivo daquela visita, foi buscar orgulhosa o filhinho, depositando-o nos braços de um deles. Ora, eles decidiram, no caminho, que executaria a missão aquele a quem ela primeiro entregasse a criança.
Naquele momento, porém, o menino abriu um largo sorriso para seu matador, que ficou tão enternecido que não teve coragem de executar a ordem, passando-o ao companheiro ao lado, e êste ao outro, e assim por diante, sem que nenhum teve coragem de cumprir a missão.
Vencidos por um sorriso, devolveram a criança à mãe e saíram constrangidos, acusando-se mutuamente de fraqueza e covardia.
Após muita discussão, decidiram todos voltar e executarem a tarefa em conjunto. Acontece que Labda ouviu toda aquela discussão e teve tempo de esconder o menino numa tulha, onde não conseguiram encontrá-lo. Então aquela turma resolveu dizer ao rei que mataram a criança.
De onde vem essa estranha força do sorriso inocente que salvou a vida de Cípselo, o filhinho de Labda e futuro rei de Corinto? A ciência diz que é um comportamento natural, impresso no cérebro dos pequeninos humanos pela infinita sabedoria da espécie. Trata-se de um mecanismo de sobrevivência, destinado a cativar a mãe e garantir o apego dos mais próximos, para assegurar que o bebê terá os cuidados necessários. Pressentimos, no entanto, que tal sorriso misterioso, que faz todos sorrirem junto, despertando em cada um o que tem de bondade de ternura, , não está ali para salvar somente o bebê, mas também a todos nós. Ele ri como se tivesse um segredo feliz para compartilhar conosco, como se quisesse nos lembrar de alguma coisa importante que estamos esquecendo: que esta vida é preciosa e vale cada minuto.

Pérolas da Mitologia - Pais e Filhos

Este é o tema central da cena magistral que Homero escolheu para encerrar sua Ilíada. No mais famoso confronto da Guerra de Tróia, quiçá de toda história da humanidade, Aquiles, filho de uma deusa com um mortal, o maior guerreiro de todos os tempos, venceu facilmente o mais valoroso dos troianos, que era Heitor, filho de Príamo, rei de Tróia.
Não satisfeito em matá-lo, Aquiles amarrou o corpo de Heitor no seu carro e o arrastou pelo pó da planície até o acampamento grego, onde o deixou insepulto para ser devorado pelos cães famintos que rondavam o campo de batalha.
Do alto das muralhas os troianos assistiram estarrecidos seu herói ser morto por Aquiles, mas ninguém se desesperou mais do que seu pai, o velho rei Príamo, por não poder dar ao seu filho um digno funeral.
No Olimpo os deuses também se indignaram com o triste fim de Heitor, pois ele era um homem justo, um grande guerreiro e não merecia esse derradeiro ultraje. A uma ordem de Zeus, o cadáver do herói foi coberto por um bálsamo divino que impedia a putrefação. Íris a deusa mensageira, foi sugerir a Príamo que oferecesse um rico resgate pelo corpo, como era costume entre os gregos, enquanto a deusa Tétis, mãe de Aquiles, foi até sua tenda para convence-lo a devolver Heitor à sua família.
Príamo deixou a cidade e dirigiu-se à noite até o acampamento grego, com uma carreta pesada de riquezas. Hermes, o deus dos caminhos, guiou-o na escuridão até o campo inimigo. Lá, o deus adormeceu os guardas e o carro pode passar desapercebido, deixando Príamo frente à tenda de Aquiles. Este surpreendeu-se quando o velho rei surgiu da noite e arrojou-se ao solo, à sua frente, e beijou-lhe suplicante, a mesma mão que ceifara a vida de seu valoroso filho: " Dá o meu Heitor de volta, Aquiles! Pensa no teu pai, que também deve ter cabelos brancos e deve te amar como eu amei meu filho!"
Ouvindo essas palavras, Aquiles lembrou com tristeza que seu pai, o velho Peleu, devia estar de longe, lá na Grécia, esperando seu retorno, sem saber que seu oráculo havia predito que ele não voltaria de Tróia.
Comovido, ele retirou mansamente a sua mão das mãos de Príamo, e os dois, frente a frente, unidos pelo mesmo sentimento de dor e solidão, irromperam num pranto comum que veio encher a imensidão daquela noite com os seus soluços, não mais como dois inimigos, mas como dois simples homens que choravam a infinita saudade de todos os pais e de todos os filhos que nunca mais vão se ver.